A Febre de Sentir

Máquina

Após os primeiros contatos e inicial troca de informações, as entrevistas foram marcadas. Todos se surpreenderam com o tema. Talvez não esperassem ser contatados por esse motivo, com esse viés. “Professores da UFSM que produzem literatura” dizia o corpo das mensagens; este era o tema. “É uma ótima pauta”, comentara um deles. Uma ótima pauta que ainda duvidava de si mesma…

Afinal, sobre o que era a pauta? Professores? Escritores? Literatura? Magistério? Nem o repórter sabia ao certo. Havia uma ideia. Havia as fontes. Havia entrevistas marcadas. “Melhor seguir com as entrevistas e ver no que dá…”, ele pensou e assim o fez. Formulou algumas perguntas, ainda desnorteado pela instabilidade do tema. Agendou as entrevistas e, no dia e hora marcados, pressionado pelo fluxo do tempo que não volta, saiu a realizá-las.

No Departamento de Letras, óbvia opção inicial, conversou com o professor Orlando Fonseca. Na História, alternativa tão óbvia quanto a primeira, contatou o professor Vitor Biasoli. As Ciências Sociais contribuíram com o professor Humberto Zanatta. Por último, Rondon de Castro surgiu da Comunicação. Sabia que havia mais. Havia outros. Mas os limites de possibilidade foram rígidos. Talvez numa outra oportunidade…

As entrevistas começaram pelo início, e pelo início começaram eles. De forma geral, todos principiaram suas experiências nas frases e versos durante a adolescência. Os egos inflados pelas paixões e a certeza de que podiam fazer algo de qualidade trouxeram os primeiros rabiscos, ainda prematuros. A inspiração, a abdução do momento sobrepunha-se à técnica; situação que, hoje, conseguem controlar. Acreditam na inspiração como parte importante, a matéria-prima é o que sensibiliza. Mas procuram a experiência e a organizam, disciplinam. Veem na alta motivação pessoal a fonte da inspiração.

Seguindo o exemplo machadiano (do autor defunto ou defunto autor), o repórter pede que hierarquizem suas atividades: consideram-se professores escritores ou escritores professores? Os pensamentos vagam por um momento e pousam sobre a primeira opção. A profissão garante a sobrevivência. Num país que não valoriza seus escritores, a escolha entre a escrita e o magistério torna-se difícil, ou mesmo improvável. Por outro lado, a sala de aula é mais que uma fonte de renda. Num mundo ideal, em que poderiam viver da literatura, não se enxergam devotados somente a ela. A sala de aula os puxa numa abdução tão forte quanto os insights que os atravessam.

Ainda neste sentido, percebe-se a influência das aulas em suas escritas. Seja indiretamente, através do incentivo de novas leituras, comentários durante as aulas, circunstâncias humanas que servem de matéria-prima, seja diretamente, através da disciplina adquirida pelo rigor da ciência. E num ato recíproco, o reverso também ocorre; seja direta ou indiretamente, em comentários sobre livros e autores relevantes, ou (em âmbito mais pessoal) pela troca de experiências, a escrita influencia o dia a dia na sala de aula.

Com isso, ao emergir nos alunos o conhecimento da prática literária de seus professores, surge certa identificação por parte daqueles que gostam do assunto, certa admiração. Iniciam-se os diálogos sobre literatura e produção literária, os comentários e “truques”, dicas de escrita… Este conhecimento, segundo os professores, mexe com os alunos.

É feito, então, outro paralelo. O repórter pergunta, nas suas opiniões, o que é o ensino. Em primeiro lugar é considerado o estabelecimento de empatia entre o professor e o aluno, para então guiar, tirar do desconhecimento ao conhecimento, ajudar a descobrir as potencialidades. Em resumo, o ensino é visto como uma atividade modelar, de exemplo. O que seria, então, a literatura? E suas respostas são imediatas: uma das expressões da arte, do conhecimento; ou seja, uma impressão de mundo que relata o quotidiano e possibilita a construção de conceitos; a produção com as palavras do que se pode sentir e a perseguição desse sentimento. Conclui-se, com isso, que a literatura ensina e o ensino inspira.

Inspiração… O repórter achou por bem deixar por último a pergunta que sentiu ser a mais pessoal, apesar de ela já ter sido parcialmente respondida. “O que te inspira? ”. Nesse momento, o silêncio. O repórter viu seus olhares perdidos em horizontes interiores, e assim por alguns segundos, até que aqueles homens, com seus grisalhos, tentavam pôr em palavras o que vinham tentando pôr em palavras desde sua adolescência. Zanatta: “A visão de mundo, do mundo”; Fonseca: “A vida, o ser humano”; Biasoli: “Vivências, experiências íntimas, profundas, que precisam de resolução”; Castro: “Melhorar o mundo, a peregrinação da vida”. A resolução… tão sonhada pelos que escrevem. “A resolução é a escrita”, conclui Biasoli. “Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir”, conclui Fernando Pessoa.

E assim o repórter se despede, não antes de tornar-se o entrevistado por alguns momentos. Lembrou-se do que um dos professores dissera no início. Realmente, era uma boa pauta. As experiências compartilhadas e assuntos abordados trouxeram-lhe certa satisfação. E apesar de ainda não saber ao certo sobre o que é a pauta, sente que valeu a pena, ou, no jargão, sente que rendeu. Afinal, sente que é preciso diminuir a febre de sentir, e isso lhe dá alguma esperança de resolução…

 

Reportagem publicada na revista .TXT, 19ª edição, Junho de 2014.

Link original do texto: A Febre de Sentir – Revista .TXT

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