Bengalas Amaldiçoadas e Escorpiões Robóticos à Luz de Velas

Enéias Tavares

Foto: Alexandre Alaniz

Há exatamente setenta e oito invernos que me encontro nesta situação. Culpa daquele maldito mago cristão cabalista, que enfrentamos na cidade de Feio Horizonte.

Recebi um amigo de presente desde ambas nossas infâncias. Prometi que sempre o protegeria. Crescemos juntos e tornei-me seu cão de guarda. Andamos por todo este Brasil a encontrar pessoas, salvar artefatos antigos e assassinar perversos alcaides.

Ah, perdão. Meu nome é Adamastor. Um nome branco demais para uma origem indígena, sim. Mas condizente com minha selvageria frente às ameaças e doçura entre amigos. Em nossa batalha contra o pérfido mago, este jogou-me um feitiço demoníaco, aprisionando-me para sempre nesta forma de bengala de chifre de boi. Meu amigo vingou-me e condenou o tinhoso alquimista ao eterno abraço da escuridão. Continuar lendo

A Tragédia Literária

ilusões perdidas

Honoré de Balzac nasceu em Tours, região central da França, em 20 de maio de 1799. Teve uma prolífica vida literária e uma vida pessoal e financeira conturbada. Investiu pesado na carreira de editor e impressor de livros, aplicação que não vingou e lhe gerou várias dívidas, além de um rico material utilizado por ele em suas obras. Teve várias amantes, incluindo uma condessa de origem polonesa, admiradora de seu trabalho, com quem casou, já no fim da vida. Morreu em Paris, em 1850, aos 51 anos.

Sem dúvida, Balzac é um dos maiores escritores de todos os tempos. Sua obra magistral contém mais de cem livros, sendo que 88 deles (a maioria romances) constituem A Comédia Humana. Este conjunto, que surpreende pelo título (uma referência direta à Divina Comédia, creio) e que espanta pelo número, basicamente inventou o século XIX e pode ser tomada como exemplo basilar de uma estética em transição. Continuar lendo

O Quixote Brasileiro

policarpo quaresma tratada

O Modernismo foi um movimento literário e artístico brasileiro que buscava um retorno às raízes, uma inspiração nos aspectos mais próprios da cultura e realidade brasileiras. Foi inaugurado com a Semana de Arte Moderna de 1922 e deu início a uma nova fase na literatura e artes plásticas do país, separando-as das tradições acadêmicas e buscando libertar a criação e a pesquisa estética.

Um dos escritores que pode ser considerado um prenunciador deste movimento é Lima Barreto. Nascido no Rio de Janeiro a 13 de maio de 1881, Afonso Henriques de Lima Barreto é hoje considerado um autor clássico da literatura brasileira. Publicou várias peças, entre romances, artigos, crônicas, contos e sátiras. Continuar lendo

O Espelho do Real

o vermelho e o negro

Capa de edição francesa rara, ilustrada, de 1922, de O vermelho e o negro

“Pois bem, senhor, um romance é um espelho que se carrega ao longo da estrada. Tanto pode refletir para os seus olhos o azul do céu como a imundície do lamaçal da estrada. Por acaso o homem que carrega o espelho em sua sacola poderia ser acusado de imoral? Seu espelho mostra a sujeira e o senhor acusa o espelho? O senhor deveria acusar o longo caminho onde se forma o lamaçal e, sobretudo, o inspetor das estradas que deixa a água apodrecer e o lodo se acumular.” Esta é uma metáfora utilizada por Stendhal em seu clássico O vermelho e o negro. Um dos primeiros aspectos que se pode notar, assim, é a utilização de tópicos do contexto político na obra. Continuar lendo

Paixão e Simplicidade

Orgulho e preconceito

Frontispício da 1ª edição de Orgulho e preconceito (1813)

Orgulho e preconceito é a principal obra de Jane Austen, uma das maiores representantes do classicismo inglês e um clássico da literatura mundial. É um retrato da realidade inglesa do século XVIII. Uma obra direta, concisa, mas não talhada; essencial, por assim dizer. É fruto do período de maturidade literária da autora e traz os personagens Elizabeth Bennet e Fitzwilliam Darcy, protagonistas da trama, como duas das criaturas mais completas da literatura universal, conforme afirmou Otto Maria Carpeaux.

Jane Austen nasceu em Steventon, a 16 de dezembro de 1775. Filha de um reverendo, possuía seis irmãos e uma irmã. Estimulada desde cedo pelo pai nos caminhos literários, começou a escrever pequenas histórias e algumas peças durante a adolescência. Sua obra se resume aos temas relações familiares, noivado e casamento, não por isso deixando de ser original. Continuar lendo

O “Quase-Herói” Goethiano

primeira edição de werther

Folha de rosto da primeira edição de Os sofrimentos do jovem Werther

“Sinto-me feliz por ter partido!” Assim, Johann Wolfgang von Goethe inicia o romance que se tornaria uma de suas principais obras, além de um clássico da literatura mundial. Os sofrimentos do jovem Werther é um romance epistolar, unilateral, sobre um jovem rapaz que deixa sua casa e vai para uma cidadezinha do interior. Epistolar, porque a história é contada através da troca de cartas e escritos entre Werther e seu amigo Wilhelm. Unilateral, porque são apresentados apenas os escritos de Werther, cabendo à imaginação do leitor (auxiliada pelas pistas deixadas por Werther em suas respostas) saber o que seu amigo lhe diz. Continuar lendo

O Jardim de Voltaire

Cândido

Considerada por muitos a obra-prima de Voltaire, Cândido (ou O Otimismo) é um longo conto (ou um curto romance) extremamente satírico sobre a realidade da época, lançado em 1759. Tanto que Voltaire não a assinou, chegando, inclusive, a negar a autoria dessa “brincadeira de colegial”, como teria se referido. O que torna compreensível é o fato de muitos de seus escritos terem sido publicados com pseudônimos; e também, caso sua história desagradasse as autoridades francesas, evitar uma terceira temporada na Bastilha.

François-Marie Arouet, verdadeiro nome do filósofo, nasceu em Paris no dia 21 de novembro de 1694. Fez algumas viagens durante sua vida; foi preso duas vezes na Bastilha; dedicou-se às letras e à política, principalmente à filosofia e ao teatro. Continuar lendo

Sobre Penas e Espadas

Dom Quixote

Página de rosto da 1ª edição de D. Quixote (1605)

Quanta arrogância achar-se capaz de criticar ou sequer discorrer sobre um dos maiores clássicos universais! E inutilmente! O que mais haveria para dizer sobre o romance mais lido de todos os tempos? Como falar sobre o Quixote de Cervantes?

Sempre há o que falar sobre o imponente Engenhoso Fidalgo Dom Quixote da Mancha. Afinal, “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”, segundo Italo Calvino. Quanto à minha capacidade de falar sobre ele, é discutível. Que sei eu perto do molde dos romances de ficção? Posso apenas apresentar minha limitada visão sobre o incrível universo quixotesco. Continuar lendo

No Café

café

Barulho. O café estava cheio. Cheio demais. Muita gente junta, conversando. Encontro meu caminho por entre elas e acho um lugar ao balcão. Surpreendo-me ao perceber a máquina de café coberta por um pano azul. “Estamos sem café”, informa a atendente. Paciência. “O senhor deseja alguma outra coisa?”, “Por enquanto, não, obrigado”. Me sento numa cadeira alta, de madeira escura e metal claro e almofada entre o laranja e o marrom claro. O balcão de madeira lisa, envernizada me serve de apoio aos cotovelos e antebraços. Uma barra circular de metal reluzente pouco acima do chão sustenta meus pés que batem num cacoete maniático e hiperativo. Recuperando-me do baque da ausência do café, passo os olhos pela parede esverdeada ao fundo, atrás da pia e balcão internos: de um verde claro, entre verde-chá, esmeralda, desbotado, fantasma e menta. Nunca fui bom com cores… Continuar lendo

Contemplação

contemplação

Desci do ônibus na última parada enquanto voltava para casa. De súbito, uma imagem me surpreende e arrebata. Passava por ali todos os dias, mas sempre via apenas mais do mesmo. De repente, o novo. Nunca tinha visto aquela diferença. No choque eu reparei; e gostei do que reparei.

A noite estava mais escura que o normal. A lua brilhava um brilho fosco, por trás das espessas negras nuvens. O céu estranhamente desestrelado (permita-me o neologismo), não devido às excessivas luzes da cidade, mas à excessiva e também estranha confusão do clima. A noite estava mais quente que o normal; um calor inesperado para uma comum noite invernal. Continuar lendo