O Espelho do Real

o vermelho e o negro

Capa de edição francesa rara, ilustrada, de 1922, de O vermelho e o negro

“Pois bem, senhor, um romance é um espelho que se carrega ao longo da estrada. Tanto pode refletir para os seus olhos o azul do céu como a imundície do lamaçal da estrada. Por acaso o homem que carrega o espelho em sua sacola poderia ser acusado de imoral? Seu espelho mostra a sujeira e o senhor acusa o espelho? O senhor deveria acusar o longo caminho onde se forma o lamaçal e, sobretudo, o inspetor das estradas que deixa a água apodrecer e o lodo se acumular.” Esta é uma metáfora utilizada por Stendhal em seu clássico O vermelho e o negro. Um dos primeiros aspectos que se pode notar, assim, é a utilização de tópicos do contexto político na obra.

Stendhal é o pseudônimo de Marie-Henri Beyle, nascido a 1783, em Grenoble, França. Sua vida foi entremeada por um árduo caminho de tropeços nas relações pessoais e seu reconhecimento foi adquirido apenas post mortem. Foi subtenente no governo de Napoleão e participou como intendente das campanhas napoleônicas na Áustria, Rússia e Alemanha. Com a queda do império, passou a dedicar-se ao sonho literário. Escrevendo pelo menos duas páginas por dia, fosse de adaptação, tradução ou invenção, Stendhal chegou ao ápice de sua produção literária, com o lançamento de O vermelho e o negro, em 1830. É nomeado cônsul e vai para Paris, onde, em 1842, morre de um ataque de apoplexia.

Esta obra-prima do escritor acompanha a vida Julien, um jovem plebeu de 17 anos, estudioso do latim e que sabe a Bíblia de cor, que passa a ser o preceptor dos filhos do prefeito de sua cidade, Verrières. Rapidamente, Julien conquista a simpatia da sra. de Rênal, mulher do prefeito. Esta simpatia transforma-se em hesitações e culmina com os dois tornando-se amantes. Julien, então, deixa a cidade para continuar seus estudos em um seminário em Besançon até que, por intermédio de um padre que tomara-lhe como protegido, torna-se secretário do marquês de La Mole.

A segunda parte do romance começa em Paris, na mansão de La Mole. Julien atrai as atenções de Mathilde de La Mole, filha do marquês, e decide experimentar até que ponto pode exercer influências sobre a monarquia, sentimento que o acompanha durante toda a história. O intenso jogo amoroso e de orgulho estabelecido entre os dois culmina em um relato da sra. de Rênal sobre seu caso extraconjugal com o jovem. Ferido em seu amor-próprio, Julien resolve matar a sra. de Rênal em uma missa. Os tiros apenas a ferem e ele vai preso, assumindo seu crime.

O vermelho e o negro apresenta-se como uma obra extremamente equilibrada e harmoniosa, feito atingido pelo autor através de uma prosa objetiva e sem floreios. A narração segue seu curso naturalmente, encadeando ações e acontecimentos sem que o leitor se antene às gigantescas modificações que o escritor vai esculpindo pela história. As descrições breves e precisas complementam o quadro criado pelas ações, diálogos e monólogos interiores. A imagem dos personagens não é fornecida ao leitor através de um narrador exterior, mas através dos próprios personagens: o que falam, fazem e pensam, como falam, fazem e pensam.

A obra possui máxima lucidez, relatando, com fidelidade, os aspectos da vida social francesa de meados do século XIX. Seu romance encaixa-se perfeitamente em todo um plano histórico, sem o qual é impossível compreendê-lo. A estratificação social, as condições econômicas, o curto período pós-Napoleão e pré-Revolução de Julho, montam com excelência a Crônica de 1830, subtítulo aposto pelo editor.

Mesmo a história pessoal de Julien é inspirada em fatos verídicos. O ponto de partida de Stendhal foi o caso de Antoine de Berthet, muito repercutido na época. Assim como Julien, Berthet era um belo jovem enviado pelo padre ao seminário. De lá tornou-se preceptor na casa do prefeito e mais tarde, segundo as intrigas locais, amante de sua esposa. Deixou a casa e, tempos depois, conseguiu outro cargo de preceptor e nova demissão devido a um envolvimento com a filha do senhor. Após um período acusando por cartas a sua primeira amante, Berthet dá dois tiros nela, durante uma missa, e depois tenta se matar. Os dois sobrevivem e o jovem é condenado à morte.

Pode-se notar, portanto, que Stendhal monta um quadro diegético como se para colocar as situações em perspectiva histórica. As condições políticas e sociais estão intimamente enredadas na ação, são parte inseparável dela. Fazem uma conexão exata entre a ficção e o real que poucas obras conseguem realizar. Atinge uma narrativa precisa, gradual, que passa a imagem de um acompanhamento passo a passo da vida real no século XIX.

STENDHAL. O vermelho e o negro. São Paulo: Abril, 2010. (Clássicos Abril Coleções; v. 26).

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