O Quixote Brasileiro

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O Modernismo foi um movimento literário e artístico brasileiro que buscava um retorno às raízes, uma inspiração nos aspectos mais próprios da cultura e realidade brasileiras. Foi inaugurado com a Semana de Arte Moderna de 1922 e deu início a uma nova fase na literatura e artes plásticas do país, separando-as das tradições acadêmicas e buscando libertar a criação e a pesquisa estética.

Um dos escritores que pode ser considerado um prenunciador deste movimento é Lima Barreto. Nascido no Rio de Janeiro a 13 de maio de 1881, Afonso Henriques de Lima Barreto é hoje considerado um autor clássico da literatura brasileira. Publicou várias peças, entre romances, artigos, crônicas, contos e sátiras. Entre suas obras mais influentes estão os romances Recordações do escrivão Isaías Caminha, publicado em 1909 e muito criticado quando do lançamento, e o Triste fim de Policarpo Quaresma, publicado em 1915. Lima Barreto viveu uma vida de dificuldades em âmbito econômico, familiar e pessoal. Foi duas vezes recolhido a um hospício e morreu no Rio de Janeiro, a 1 de novembro de 1922, vítima de um colapso cardíaco.

Com o Triste fim, Lima Barreto atinge a maturidade de sua escrita. Após muitas críticas às suas Recordações, por serem muito subjetivas e expressarem demais a pessoa do autor, ele cria o personagem Policarpo Quaresma. Escrito em apenas dois meses e meio, esta obra foi publicada inicialmente em folhetins do Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, entre 11 de agosto e 19 de outubro de 1911. Somente quatro anos depois foi lançada em volume, às custas do próprio autor.

A história passa-se alguns anos antes de sua escrita, durante o governo de Floriano Peixoto (1891-1894) e faz um retrato da sociedade brasileira poucos anos após a Proclamação da República. É neste contexto que surge o Major Policarpo Quaresma, a quem o autor caracteriza como “patriota”. Ele, entretanto, não possuía “ambições políticas ou administrativas; o que Quaresma pensou, ou melhor: o que o patriotismo o fez pensar, foi num conhecimento inteiro do Brasil, levando-o a meditações sobre os seus recursos, para depois então apontar os remédios, as medidas progressivas, com pleno conhecimento de causa.” Quaresma surge, então, como um patriota de ação, tomado por um profundo sentimento pelo seu país.

Esta admirativa ânsia de Quaresma buscará um ingênuo e vigoroso reformismo de aspectos cultural e político que traga o Brasil de volta às suas origens. Seja tentando tornar o tupi-guarani a língua oficial do país, seja cumprimentando as pessoas com lágrimas, como faziam os tupinambás, Barreto utiliza as esdrúxulas iniciativas de Quaresma para pintar o cenário histórico-social do Brasil em finais do século XIX.

E tão vivas são as cores deste quadro, que percebe-se nitidamente o conflito de classes, o anseio de ascensão da classe média, o descaso do governo com os filhos mais necessitados de sua terra; como afirma um dos personagens da área rural sobre a escassez de alimentos: “Terra não é nossa (…) Governo não gosta de nós…” E é contra tal realidade que Quaresma se levanta, contra o Positivismo em voga na sociedade brasileira e que, em prol da ordem, oprime, principalmente aos mais pobres, numa falsa esperança de progresso.

Quaresma começa a enxergar as engrenagens que giram o maquinário e vê que algo precisa mudar somente para perceber que este simples ato de pensar, de sonhar, o torna diferente dos outros, cava abismos entre os homens, como ele mesmo afirmou. Finalmente entende sua situação, num desabafo: “Ninguém compreende o que quero, ninguém deseja penetrar e sentir; passo por doido, tolo, maníaco e a vida se vai fazendo inexoravelmente com a sua brutalidade e fealdade.”

Policarpo apresenta-se quase como um Quixote brasileiro. E são incríveis as semelhanças (inclusive metafóricas) que se pode traçar entre os dois. A principal talvez seja a esperança ativa, o tentar tornar a realidade no que se acredita que ela deva ser. A principal diferença, como contraposto, pode ser o fato de Quaresma ter recobrado sua lucidez; percebera, finalmente, que “sua vida era uma decepção, uma série, melhor, um encadeamento de decepções. A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete.” A realidade tirou o lugar do sonho e o deu à reflexão, proporcionando-lhe seu triste fim, enquanto o Quixote permaneceu em sua inspiradora e abençoada loucura.

BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Ática, 1983.

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