Bengalas Amaldiçoadas e Escorpiões Robóticos à Luz de Velas

Enéias Tavares

Foto: Alexandre Alaniz

Há exatamente setenta e oito invernos que me encontro nesta situação. Culpa daquele maldito mago cristão cabalista, que enfrentamos na cidade de Feio Horizonte.

Recebi um amigo de presente desde ambas nossas infâncias. Prometi que sempre o protegeria. Crescemos juntos e tornei-me seu cão de guarda. Andamos por todo este Brasil a encontrar pessoas, salvar artefatos antigos e assassinar perversos alcaides.

Ah, perdão. Meu nome é Adamastor. Um nome branco demais para uma origem indígena, sim. Mas condizente com minha selvageria frente às ameaças e doçura entre amigos. Em nossa batalha contra o pérfido mago, este jogou-me um feitiço demoníaco, aprisionando-me para sempre nesta forma de bengala de chifre de boi. Meu amigo vingou-me e condenou o tinhoso alquimista ao eterno abraço da escuridão.

Ainda acompanho meu velho amigo. Carregado, já que não posso mais andar. Falo tupi-guarani e recito poesia grega, hebraica ou asteca, obviamente, somente ao seu ouvido. Costumo manter diálogos animados com um dos escorpiões robóticos de meu mestre. Vez ou outra, também jogo xadrez com ele.

Muito tem se falado sobre meu mestre. Não me admiro. Muitas bocas e penas contam muitas versões de suas várias histórias. Um repórter fez sua tentativa. Cabe ao leitor acreditar-lhe ou não.

O primeiro contato após o concurso foi realizado. “Gostaria de fazer uma reportagem para uma de nossas revistas sobre o concurso literário que o senhor venceu.” A resposta veio rápida, positiva e entusiasmada. Mais tarde descobriu que fora o primeiro a entrevistá-lo, após a divulgação do resultado do concurso. Surpreendeu-se.

Enéias Tavares nasceu em Santa Maria ao dia 17 de novembro de 1981. Já estudou Shakespeare e, atualmente, trabalha com William Blake. É professor de Literatura Clássica na Universidade Federal de Santa Maria e, recentemente (se é que se pode usar esta palavra neste sentido), autor do romance A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison, com o qual ganhou o concurso de literatura fantástica realizado pela editora Casa da Palavra.

Sua primeira referência de interesse ao trabalho de Blake se deu com a leitura de O Ladrão de Corpos. Encontrou ainda referências nas histórias em quadrinhos, principalmente nas de Alan Moore que, segundo Enéias, “é o maior escritor vivo”. O conhecimento sobre Blake se deu através de autores que ele gosta. Além da predileção pessoal, Enéias procurava um campo de estudos que relacionasse literatura e pintura, devido ao seu interesse pelos quadrinhos. Ao descobrir os escritos iluminados, encontrou o que procurava.

A obra com a qual venceu o concurso é um romance do gênero steampunk. Situa-se num Brasil retrofuturista, mais especificamente, na Porto Alegre de 1911. A diferença está no fato de toda esta sociedade porto-alegrense, com seus bondes, charutos e cartolas, ser permeada por robôs, utilizados nos mais diversos serviços, inúmeras fábricas que cobrem o sol com um vapor cinzento e dirigíveis gigantescos que dominam o céu. Estão presentes ainda grandes personagens da literatura brasileira, como Isaías Caminha, Simão Bacamarte, Rita Baiana, Pombinha, Léonie e Solfieri de Azevedo. Trata sobre a história do assassino serial Antoine Louison, sua prisão e suas relações com os mais diversos personagens.

Encontraram-se, professor e aspirante a repórter, pela primeira vez já para a gravação da entrevista. Todo o contato prévio havia se dado por meios digitais. Não sabia exatamente o que esperar de Enéias até que o encontrou. Na verdade, não tinha pensado nesse assunto. Viu uma foto na internet, no mesmo lugar em que descobriu sobre o concurso e o vencedor. Ainda assim, não conseguiu montar uma imagem precisa, mesmo que inicial e parcial.

Encontrou um homem que lhe parece familiar. Com seus trinta e poucos anos, de estatura média, magro, cabelos lustrosos e bem penteados para o lado. Jaqueta de couro por cima de uma camisa preta com finas listras verticais brancas enfiada por dentro da calça jeans preta (afivelada por um cinto) que cobre pequena parte dos sapatos sociais pretos. A barba bem feita completa o rosto amigável e sempre alegre. A conversa fluiu sobre sua obra, sobre literatura em geral e sobre comunicação e jornalismo.

Alguns dias depois, o repórter percebeu que a familiaridade que sentiu ao encontrá-lo provém de um professor que teve no ensino médio. Ambos são das Letras; a aparência possui traços semelhantes; o estilo é o mesmo; a forma de falar, o entusiasmo por seus projetos, a devoção pela literatura… resumindo, são bem parecidos. Às vezes, acaba-se por reencontrar determinadas pessoas em outras pessoas.

O retorno ao local da entrevista para entregar-lhe um exemplar da revista foi corrido. Alguns minutos de espera até que a reunião terminasse. Uma breve conversa. Os vários compromissos já o esperavam à porta. O repórter lembrou-se de algo que uma vez ouvira: as pessoas boas, as dedicadas, aquelas com as quais vale a pena trabalhar nunca têm tempo. Elas estão sempre ocupadas dando seu melhor em tudo que fazem. Um convite foi feito para outra conversa sobre projetos, ideias e, claro, livros.

Um horário foi conciliado alguns dias após a correria em que ambos estavam à época da entrevista. Enéias se preparava para ir à São Paulo; chegara a hora do lançamento. O encontro se deu um dia antes de sua partida. Querendo ou não, deixava transparecer alegria, entusiasmo e certo nervosismo. Um estado compreensível para quem sonha em lançar um romance desde a infância.

“Eu sempre gostei muito de história em quadrinhos. E foi um pouco a respeito de me sentir muito tocado por algumas histórias específicas e querer tocar as outras pessoas com essas histórias também.” Um sonho engatilhado a partir da morte de Jason Todd, segundo Robin nas histórias em quadrinho do Batman, em Morte em Família. O impacto foi grande. “Como assim, os personagens morrem? Crianças morrem?” O valor das histórias, como as histórias podem tocar as pessoas potencializou o sonho.

As primeiras tentativas vieram como quadrinhos sumários e rudimentares. O sonho ampliou-se: queria trabalhar para a DC Comics e criar uma história chamada “Ressureição em Família”, que trouxesse o personagem Jason Todd de volta à vida.

Já na adolescência, a História do Ladrão de Corpos foi o estopim para a decisão de fazer Letras; trabalhar com literatura; ser professor; escrever. Ao ingressar no curso, percebeu o erro da ideia de entrar para as Letras para ser escritor. Com a Lição de Anatomia lançada na bienal de 2014, em São Paulo, o sonho se realizava.

Explicou, durante a conversa, que se trata de uma série de cinco livros, intitulada Brasiliana Steampunk. A Lição de Anatomia era apenas o primeiro de outros com temas e abordagens parecidos. Apesar de crer em sua obra, foi uma sincera e agradável surpresa ser notificado de que ela fora a escolhida. Mais ainda o fato de aceitarem a sequência. Ainda havia, entretanto, assuntos a resolver e malas a arrumar para a partida no dia seguinte. O lançamento do primeiro volume, afinal, era o foco principal naquele momento.

As fotos da Bienal circulavam pela internet. Ao ser indagado sobre como fora o lançamento, resumiu-se a responder que “foi lindo. Realmente lindo.” Uma resposta satisfatória. A emoção que o repórter sentiu vazar por estas simples palavras lhe explicou o que muitos parágrafos não o poderiam. Enquanto para os que não sabem ler cada pingo é um pingo, pode sentir naquelas palavras pingadas o universo que cada pingo pode ser; os pingos que um universo pode conter; e os universos que cada pingo pode indicar. Nunca as mônadas de Leibniz fizeram tanto sentido…

As fotos do lançamento representavam um lugar animado, cheio. Muitossteamplays. O próprio Enéias vestia terno completo: camisa, gravata, colete, paletó, calça e sapatos. Todos em preto. Portava também uns goggles ao redor do pescoço e um bottom com o selo feito para a série Brasiliana Steampunk. Tinha ainda uma bengala marrom escura com espessas listras em um marrom mais claro, e cuja cabeça era, ao que parece, a de um cachorro.

E neste momento eu entro em cena. Uma versão de minha história eu já contei. Enéias prometeu-me contá-la completa em um conto a ser lançado futuramente.

Mas, se queres saber a outra versão de minha história, pois bem.

Semanas antes da Bienal, Enéias passou uma tarde inteira no caminho dos antiquários em Porto Alegre. No último antiquário, encontrou várias bengalas bonitas. Queria uma que completasse seu traje para a grande noite. Precisava. Entre várias bengalas mais grosseiras e sem refinamento, procurava uma mais do século XIX, fina.

Ao passar por várias extremamente detalhadas, cravadas por pedras preciosas e revestidas em ouro ou prata, surpreendeu-se com minha imagem. Soberana em minha simplicidade. Diferente em minha normalidade. Minha figura era a de um cão manso, dócil e meu material em diferentes tons de marrom. Sem convencer-se com a aula do vendedor, que dizia ser eu do século XIX e feita de chifre de boi, adquiriu-me e seguimos para nosso primeiro evento steampunk na companhia um do outro.

Em primeiro momento, Enéias pensou nomear-me Mefistófeles. Não sei o que pensar desse nome. De qualquer forma, neste primeiro evento a que fomos juntos, encontramos duas amigas dele. Ao ouvirem o nome que me dera, discordaram enfaticamente. Disseram que não tenho cara de Mefistófeles, mas de Adamastor. Ainda não consegui agradecê-las…

Além dos trajes, percebeu nas fotos algo que pode ver anteriormente, circulando pela internet: a capa da Lição de Anatomia. Feita em um estilo de história em quadrinhos, em que predominam os tons de marrom e vermelho. Os traços representam quatro personagens: no centro, um homem, características físicas do tradicional gaúcho, exceto pela roupa, cabelos lisos de comprimento médio, divididos ao meio, bigode, cara dura, de poucos amigos, camisa social branca, último botão aberto, mangas arregaçadas, gravata vermelha frouxa e quase escapando de dentro do grande colete marrom, calças pretas e botas, luvas em ambas as mãos, cada uma com sua arma, cinto e dois coldres, um em cada perna.

À direita, uma bela mulher negra, cabelos longos e ondulados, olhos castanho-claros, lábios grossos, veste uma jaqueta vermelha que cobre um espartilho branco com detalhes em rosa, calças pretas e botas.

À esquerda, uma, tão bela quanto a primeira, mulher branca, longos cabelos lisos e negros, cobertos por uma cartola avermelhada, ao redor desta, unsgoggles, olhos escuros e nariz pequeno e levemente arrebitado, lábios finos, gargantilha preta, casaco sobretudo em um tom de bordô, espartilho e luvas rosas, calças cinzas, cinto e bota.

Atrás destes, dominando grande parte da imagem, um homem escuro, quase uma grande sombra, cartola, costeletas e bigode, um sorriso malicioso entre dentes incrivelmente brancos e um queixo tão rústico e duro quanto o do primeiro, grande casaco negro e, possivelmente, um lenço ou cachecol no pescoço.

Ao fundo, para compor a temática, uma fila de robôs de tipos diferentes, todos com a mesma expressão, todos na mesma posição, todos soltando vapor por uma espécie de chaminé que têm nas costas.

Ainda há, logicamente, o nome do autor e da obra em tons de laranja e amarelo. O selo da sérieBrasiliana Steampunk, uma engrenagem-relógio, em laranja no topo esquerdo. Os louros do concurso mais abaixo. O selo da editora no canto inferior direito.

Como apreciador de histórias em quadrinhos, assim como Enéias, o repórter viu uma complementaridade entre a capa e o que ouvira sobre a história até então.

– Combinado. Quinta, às 17:30.

– Combinado. Mas nesta quinta, como não terei compromisso, podemos marcar para mais tarde, tipo 18 horas. Pode ser?

– Certo. Quinta, às 18 horas. Fica bom para mim também.

Na quarta:

– Tudo certo para amanhã?

– Sim, meu caro. Amanhã, 18 horas, te espero.

Às 18 chegou no portão. Tocou o interfone.

– Matheus?

– Isso.

– Vou abrir para ti.

Passou pelo primeiro portão de grades verticais de um metal pintado de cinza-chumbo e o segurou para que uma moça com uma sacola em cada mão saísse. Dirigiu-se ao segundo por uma pequena área aberta; um curto corredor. Olhou para o céu completamente acinzentado e carregando-se cada vez mais desde à tarde.

Tocou de novo o interfone e, desta vez sem resposta, o portão de metal branco simplesmente destrancou-se.

O corredor era estreito e em tom de bege, cuja iluminação amarelada apenas acentuava a coloração. Ao elevador, não prestou atenção. Estava preocupado demais em chegar ao quarto andar.

Encontrou a porta. Parou. Sua mão foi em sua direção. E parou no meio do caminho. A porta se abriu. Cumprimentaram-se. Ele o convidou a entrar. Ele o fez. Ele fechou a porta.

Seguiu por um pequeno corredor, passando à direita pela cozinha e chegando a um aposento agradável. Um ambiente em tons meio marrom meio laranja meio bege. Um grande tapete felpudo e vermelho; uma mesinha de centro cheia de livros; dois sofás: um deles com dois lugares e vários livros em uma das guardas, o outro, com três lugares, estava entre uma grande luminária metálica com pedestal curvo que ia do chão acima dele e uma mesa no canto da parede com pilhas de livros; uma cadeira (não chegava a ser poltrona); em uma das paredes, um grande quadro horizontal que, por mais que se esforce, não recorda o conteúdo; em outra, uma versão enquadrada de um cartaz do cabaré francês Le Chat Noir, que, por coincidência, foi inaugurado exatamente um século antes do nascimento de Enéias.

– Vamos conversar aqui na sala. Fique à vontade.

Enquanto o professor ia a outros cômodos, o repórter olhou ao redor e descobriu uma pequena sombra mesclada em marrom e preto aproximando-se timidamente, espreitando-o por trás da mesa de centro. A sombra aproximou-se e ele se abaixou. Devagar, levou as costas da mão ao seu focinho. Ela o cheirou e logo permitiu um cafuné.

– Ah, já conheceste a Penélope… Acompanhas-me em um café? Podes sentar.

Sim, como imaginado, Penélope é uma referência literária à Odisseia.

Sendo a primeira fala retórica, acenou a cabeça positivamente para a segunda e cumpriu a terceira. Sentou-se no sofá menor. Logo a felina subiu ao seu lado e aproximou-se vagarosamente, ainda tentando conhecer o intruso. Passou a mão em sua cabeça novamente enquanto ela fechava os olhos, abria levemente a boca e inclinava a cabeça para o lado.

– Preferes com ou sem açúcar?

– Sem, por favor.

Ele se levantou e foi em direção ao balcão americano no qual Enéias havia acabado de pôr duas xícaras amarelas. Pelo pouco que pode ver, a cozinha era pequena, mas continha o necessário e o suficiente para um homem que mora sozinho e próximo ao trabalho. Enéias foi à cafeteira e trouxe a jarra quase cheia do negro líquido, cujo aroma já infestava o apartamento. Serviu as duas e entregou-lhe uma. Devolveu a jarra ao seu lugar, pegou sua xícara e foi em direção à sala.

O repórter voltou ao seu lugar ao sofá e o escritor sentou-se na cadeira à sua frente, ao lado da mesa de centro. A conversa fluiu sobre seus projetos. Comentários e dicas de um lado e do outro. Trabalhos e planos de pesquisas, na graduação e pós-graduação. Aulas que o professor dá e seus alunos, aulas que o aluno assiste e seus professores. A vida, as discussões, os conflitos na Academia relativos à concepção atual sobre o que é a Ciência e como são feitas as pesquisas. Livros e escritores, nada surpreendente entre um professor das Letras e um futuro jornalista. Histórias em quadrinhos e suas estéticas, suas estórias e histórias, suas técnicas, como conseguem ser quase que a fusão entre o cinema e a literatura e ultrapassar a ambos…

Acabou o café. Enéias foi até a cozinha e trouxe a jarra com a quantia exata para mais duas xícaras. Levou-a de volta.

Ao retornar, mostrou vários livros. Principalmente aqueles que tratam dos quadrinhos e seus autores. Obras em português e inglês, grandes e pequenos, capa dura e capa mole.

Depois de algum tempo, o repórter percebeu pela primeira vez o som das gotas indo de encontro ao concreto, asfalto, aço. “Uma chuva que molha por inteiro. Insistentemente. Respingando nos pensamentos daqueles que se refugiam em suas casas, daqueles que se guardam do mundo, dos que se guardam de si mesmos”, como aquele seu outro professor uma vez escreveu. Apenas o resultado do que o plúmbeo firmamento afigurava antes de sua chegada.

– Vou ali no quarto fechar as janelas e já volto.

Na volta, foram ao seu escritório ou ambiente de trabalho, cuja porta fica ali mesmo na sala. Um pequeno aposento. À direita, uma escrivaninha e um computador acompanhados de uma cadeira e uma estante de livros acima destes. À esquerda, uma mesinha com pilhas altas de livros. Na parede em frente à porta, uma janela.

Enéias não restringe seu trabalho apenas àquele espaço. Escreve nesse ambiente, na sala, no quarto… Na verdade, não gosta de escrever sempre em um mesmo local. Na universidade possui três mesas em três salas diferentes, pelas quais varia durante sua escrita. Da mesma forma, não lê sempre no mesmo local ou na mesma posição. Lê no quarto, na sala, na biblioteca, sentado, deitado, numa cadeira, nos sofás ou no chão.

Por último, foram ao que seria uma biblioteca ou segunda sala que fica diretamente ao lado do escritório. Para chegarem, no entanto, voltaram à sala inicial e, do lado oposto à porta de entrada do apartamento, passaram entre uma mesa com tampo de vidro quadrado que possui quatro lugares, e um móvel, tipo um pequeno rack, com vários CD’s e um aparelho para executá-los, de onde vinha a leve melodia de Muse que tocava ao fundo de toda a conversa.

Ao entrarem, a primeira e única coisa que o repórter viu foi uma grande estante que ocupava toda a parede ao lado, de alto a baixo. Estava cheia de livros e alguns DVD’s. Conversaram sobre obras e traduções, enquanto o professor procurava uma em específico. Aquele apenas olhava os vários livros, passando por alguns que tem e outros que quer.

Vendo aquela estante cheia, lembrou de seu tio, que possui uma muito parecida em sua casa. Lembrou do amor pelos livros que divide com ele. Do desejo, desde que se entende por gente, de um dia ter uma estante dessas que possa chamar de sua. De ver, aos poucos, esse desejo se tornando realidade. E ali, na sua frente, mais uma vez se afigurava tal anseio. Comentou sobre isso com Enéias.

– Quantos anos tu tens?

– Dezenove.

– Nossa! Achei que fosse mais. Está muito cedo, é verdade. Mas no ritmo que tu estás, conseguirá facilmente.

Sem encontrar o que procurava, voltaram à primeira sala. O repórter percebeu, então, que também havia um sofá na biblioteca. Passara ao seu lado na entrada e não o percebera.

O escritor foi ao seu escritório e trouxe um livro. Entregou-lhe. “Espero que goste.” O aspirante admirou a capa como um todo, finalmente, em mãos. Observou capa e contracapa. Passou a primeira página. Leu a dedicatória. Agradeceu e guardou sua Lição de Anatomia na mochila, enquanto o outro foi até o quarto e voltou com um adesivo que também lhe entregou. Era o selo da série Brasiliana Steampunk, aquele da engrenagem-relógio que achou sensacional, e os quatro personagens da capa.

Surgiu, timidamente, outro pequeno ser na sala. Andando calmamente, calculando cada passo. Aproximou-se devagar, sem saber ao certo o que acontecia ou quem é aquele que estava sentado no sofá. Mona, de um pardo meio amarelado, mais tímida que Penélope, não se aproximou muito. Apenas olhou para Enéias, olhou para o repórter, e deitou-se no tapete, cuidando aquele estranho invasor.

Como o primeiro, este nome também se apresenta como uma referência literária. Desta vez à Hora das Bruxas, de Anne Rice, mais especificamente à personagem Mona Mayfair. E, apesar do nome, escolhido por simples predileção literária, a ficção não se reflete na realidade. Enquanto a gata é assustada e tímida, a personagem é exatamente o oposto, sedutora.

Conversaram mais um pouco sobre Brasiliana Steampunk, agora, sem café. O convite ao lançamento do livro na cidade foi reforçado e Enéias se levantou.

– Bom, se não te importas, preciso dar uma saída agora. Vou encontrar outro amigo.

– Sem problemas.

– Marcamos outra conversa.

– Com certeza.

Ele vestiu uma jaqueta de couro preto. Colocou outro exemplar da Lição de Anatomia em uma bolsa que levou ao ombro.

– Tens guarda-chuva? — perguntou, dirigindo a atenção às ditas “lágrimas celestes” (cuja maior discussão é saber se são de júbilo ou aflição).

– Sim. — respondeu o repórter, retirando-o da mochila.

– Posso pegar uma carona contigo até um pedaço do caminho?

– Claro.

– Esqueci o meu no trabalho.

Trabalhar perto de casa e só perceber em um dia chuvoso que o guarda-chuva ficou no serviço talvez seja uma das maiores pequenas decepções que temos no dia a dia.

Saíram. Conversaram sobre escritos e escritores até a bifurcação de seus caminhos, em uma esquina próxima.

– Já calmou a chuva. Vou por aqui. Obrigado.

– Nada.

– Gostei da nossa conversa hoje. Foi um prazer.

– Sim, eu também.

– Até mais!

– Até!

Com um aperto de mãos e um tapinha nas costas, separaram-se.

Encontraram-se novamente algumas outras vezes. O repórter, acostumado a essa rotina, assistiu a uma de suas aulas sobre literatura greco-latina. Com apenas um pen drive, a chave da sala e uma garrafa d’água, Enéias falou sobre a tragédia grega em seu contexto histórico durante umas duas horas.

Depois da aula, o professor voltou para casa caminhando pela ciclovia do campus. O ar é sempre puro e a noite, bela naquele lugar. Um frio agradável tomava seu corpo. A queda de temperatura não fora tão brusca a ponto de exigir casacos. Caminhava calmamente, mas a passos largos e, se não tivesse companhia, certamente estaria sussurrando junto à letra do último álbum deU2.

Alguns dias depois ocorreu o lançamento da Lição de Anatomia em Santa Maria. Vestido a caráter, como sempre faz nesses eventos, Enéias conversou com dois outros autores steampunk da cidade, respondeu às perguntas dos fãs, tirou fotos e deu autógrafos. Recebeu o convite para ser patrono de uma de suas turmas e quase falhou em segurar o choro. Leu um manifesto em resposta a todas as vozes contrárias e recomendações exageradas que ouvira durante seu percurso.

Seu traje era basicamente o mesmo da Bienal, apenas a gravata tornara-se branca. Trazia também uma cartola e um mono goggle ao redor desta. Dessa vez, trazia seu pequeno escorpião robótico ao redor do dedo anelar direito.

Dizem as más línguas que ele, ao chegar em casa, põe a mão em cima da escrivaninha e seu escorpião desenrosca-se de seu dedo e posiciona-se próximo à caixa de joias e apetrechos. Também deixa sua bengala ao lado da mesma escrivaninha. Vez ou outra, ao levantar seus olhos da página que lê ou da página que escreve à luz de velas, percebe Adamastor e o escorpião encabulados em meio a uma intrincada partida de xadrez.

Texto publicado na revista Proa, em Junho de 2015. Link original do texto: https://goo.gl/8yz9JG

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