O Ser e o Não Sou

aos 7 e aos 40

“Ser ou não ser, essa é que é a questão: / Será mais nobre suportar na mente / As flechadas da trágica fortuna, / Ou tomar armas contra um mar de escolhos / E, enfrentando-os, vencer?”. O monólogo de Hamlet, composto por Shakespeare, evidencia a dúvida do personagem em relação ao que fazer, após saber a verdade sobre a morte de seu pai. Em Aos 7 e aos 40 de João Anzanello Carrascoza ocorre uma dúvida semelhante: Sou ou não sou? Pergunta-se o protagonista.

Carrascoza nasceu em 1962, na cidade de Cravinhos, interior de São Paulo. Formou-se em comunicação social e publicou, em 1994, seu primeiro livro, Hotel solidão, obra que lhe rendeu o Concurso Nacional de Contos do Paraná. Assim se inicia sua extensa lista de publicações e prêmios vencidos. Continuar lendo

O Sorvete

o sorvete

Eu andava pelas ruas rumo ao centro da cidade naquele excessivo dia quente de inverno. O sol já havia passado das cinco da tarde, mas ainda se fazia intenso. De repente, me deparo com um rapaz, em torno dos vinte anos, sozinho, que vinha andando na direção oposta. Ele estava cm um sorvete de casquinha na mão. Comia-o com uma daquelas “pazinhas” próprias a isso, no entanto, com certa dificuldade.

Complicando-se na dificultosa atividade, dá um longo suspiro, abaixa a mão portadora da pazinha e lambe o sorvete. Nem havia ainda acabado a ação e, com a língua ainda para fora, levanta os olhos, observando se alguém o observava. A vergonha tracejou-se claramente naquela cara barbada e extremamente infantilizada pela posição meio cabisbaixa, a boca aberta, a língua para fora, os enormes olhos arregalados que olhavam para cima, perscrutando por desconhecidos olhares reprovadores ou zombeteiros. Continuar lendo

Por Mares Nunca de Antes Navegados

frontispício da 1ª edição de os lusíadas (1572)

Frontispício da 1ª edição de Os lusíadas (1572)

“Este receberá, plácido e brando,

No seu regaço o Canto que molhado

Vem do naufrágio triste e miserando,

Dos procelosos baxos escapado,

Das fomes, dos perigos grandes, quando

Será o injusto mando executado

Naquele cuja Lira sonorosa

Será mais afamada que ditosa.”

Os versos acima compõem a estrofe de número 128 do canto X de Os Lusíadas, de Luís de Camões. Narram um naufrágio enfrentado pelo poeta no rio Mekong, no sudeste asiático. Nesta ocasião, Camões se salva em uma tábua, levando consigo apenas o manuscrito já iniciado de sua maior epopeia. Continuar lendo

A Fantástica Aventura do Doutor Tavares

Capa do livro de Enéias Tavares

Escrito em parceria com Amanda Boeira

Enéias Tavares, professor do Departamento de Letras Clássicas e Linguística da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), foi o vencedor do concurso literário A Fantasy quer o seu mundo!, realizado pelo Selo Fantasy da editora Casa da Palavra, do Rio de Janeiro. O resultado foi anunciado no último dia 16 de junho. Enéias terá, como prêmio, seu livro publicado pelo selo Fantasy Casa da Palavra. Tavares é graduado em Letras (Português/Inglês). Possui mestrado em Literatura Comparada, período no qual traduziu a obra Otelo – O Mouro de Veneza, de Shakespeare. Tem doutorado em Estudos Literários e parte da sua formação realizada na Universidade de York (Inglaterra). Os três estágios de sua formação acadêmica foram concluídos na UFSM. Continuar lendo

O Início dos Sintomas

Pena

(Bastidores da reportagem A Febre de Sentir)

O primeiro desafio talvez tenha sido encontrar a pauta. A revista seria feita em pouco tempo e nenhum assunto me chamava atenção ou interessava. Alguns dizem que devemos deixar a inspiração chegar a seu tempo, outros, que a busca traz a inspiração. Digamos que me encaixo entre esses dois grupos e, por ironia do destino, foi exatamente isso que aconteceu.

Aguçados todos os sentidos para qualquer acontecimento que pudesse render uma reportagem, me vi cego, surdo, mudo, encapsulado numa bolha, impossibilitado de encontrar algo que me desprendesse. Até que um belo dia, desistente de pensar sobre o assunto, fui à livraria (paraíso, assim como a biblioteca, às mentes cansadas). Entre livros e livros, títulos e títulos, obras e obras, namorava alguns, rejeitava a outros, como de hábito, perambulando pelo recinto. A capa acinzentada de um livro recém-lançado chama-me a atenção. Continuar lendo

A Febre de Sentir

Máquina

Após os primeiros contatos e inicial troca de informações, as entrevistas foram marcadas. Todos se surpreenderam com o tema. Talvez não esperassem ser contatados por esse motivo, com esse viés. “Professores da UFSM que produzem literatura” dizia o corpo das mensagens; este era o tema. “É uma ótima pauta”, comentara um deles. Uma ótima pauta que ainda duvidava de si mesma…

Afinal, sobre o que era a pauta? Professores? Escritores? Literatura? Magistério? Nem o repórter sabia ao certo. Havia uma ideia. Havia as fontes. Havia entrevistas marcadas. “Melhor seguir com as entrevistas e ver no que dá…”, ele pensou e assim o fez. Formulou algumas perguntas, ainda desnorteado pela instabilidade do tema. Agendou as entrevistas e, no dia e hora marcados, pressionado pelo fluxo do tempo que não volta, saiu a realizá-las. Continuar lendo

As Metáforas da Ópera

ópera de sabão

 

1954. Vargas se suicida. Mas esse não é o foco. Claramente esse fato foi o estopim de toda a trama folhetinesca e radio novelesca de Marcos Rey, Ópera de sabão, mas não é o importante. Como o título sugere, a trama segue o ritmo e estilo das radionovelas, em inglês, soap operas (óperas de sabão). A expressão surge devido aos vários comerciais de patrocinadores das novelas, em geral, marcas de sabão. Mas, não, o sabão também não é importante. O que importa, talvez, seja a experiência do autor em radionovelas. Certamente isso deu tom particular à obra. Continuar lendo

Linhas Invisíveis

Onze

“Um fio vermelho invisível que conecta os que estão destinados a conhecer-se, independentemente do tempo, lugar ou circunstância. O fio pode esticar-se ou emaranhar-se mas jamais se quebrará”. Esta é a antiga lenda chinesa do Fio Vermelho do Destino (Akai Ito). O romance Onze (1995), de Bernardo de Carvalho, também possui um fio conector invisível e segue o mesmo padrão.

Bernardo de Carvalho é carioca. Nascido em 1960, é escritor e jornalista. Debutou sua carreira literária em 1993 com seu único livro de contos, Aberração. Continuar lendo

Labirintos Internos

Barreira Imagine-se dentro de um carro que passa rapidamente por uma bela estrada. Sua visão percebe as coisas na mesma velocidade do automóvel. Certamente não conseguirá captar tudo na primeira vez. Imagine que esse carro para em frente a uma porta. Você desce, se aproxima da porta e entra onde quer que ela dê. Um labirinto se abre à sua frente. Você começa a se aventurar por ele. As muitas esquinas e curvas lhe levam a lugares que lhe dão a sensação de já percorridos. Você se sente andando em círculos, se sente perdido. Mas continua a caminhada e a procura pelo centro, até que o encontra. Sobe até um segundo nível que permite a visão de todo o labirinto e percebe que todas as voltas e esquinas foram necessárias para que você chegasse ao centro. Nenhuma em excesso. Nenhuma em falta. Continuar lendo

O Nome

Entramos no ônibus naquele final de tarde. Um dia de outono. O sol já baixava e refletia amareladamente nas ainda verdes folhas dos áceres do campus. Sentamos nas duas poltronas à esquerda, na última fileira. Em torno de uma hora de viagem estava à nossa frente.

Conversamos sobre tudo e qualquer coisa (pedir-me para lembrar especificamente seria exigir demais de uma memória não tão boa). Bate-papos. Papos bobos. Conversas ao vento. Quotidiano. E os centímetros começavam a tornar-se metros, que viriam a tornar-se quilômetros, enquanto eu não conseguia olhar para ela devido ao baixo sol, na direção dos meus olhos. Ah, sim, ela estava ao lado da janela. Continuar lendo