Sobre Penas e Espadas

Dom Quixote

Página de rosto da 1ª edição de D. Quixote (1605)

Quanta arrogância achar-se capaz de criticar ou sequer discorrer sobre um dos maiores clássicos universais! E inutilmente! O que mais haveria para dizer sobre o romance mais lido de todos os tempos? Como falar sobre o Quixote de Cervantes?

Sempre há o que falar sobre o imponente Engenhoso Fidalgo Dom Quixote da Mancha. Afinal, “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”, segundo Italo Calvino. Quanto à minha capacidade de falar sobre ele, é discutível. Que sei eu perto do molde dos romances de ficção? Posso apenas apresentar minha limitada visão sobre o incrível universo quixotesco.

Para início de conversa, toda obra genial tem um gênio por trás. E quem nunca ouviu falar de Miguel de Cervantes Saavedra? Espanhol, nascido em Alcalá de Henares, em 1547. Sua própria vida, como sua maior obra, foi repleta de aventuras. Teve uma infância difícil, sua família vivia endividada. Foi camareiro, soldado, escritor e gênio. Experimentou os dois lados do discurso de Quixote sobre armas e letras. Nas primeiras, foi honrado e perdeu a mão esquerda, inutilizada por uma bala. Nas segundas, eternizou sua mão direita, empunhando a pena que, apesar de não trazer a paz, criou a lei e o exemplo que não precisam da defesa das armas.

Ficou cinco anos preso em Argel e, a partir desse período, dedica-se cada vez mais a escrita. Vendo-se livre, faz alguns bicos para sustentar a família. Publica a primeira parte do Quixote em 1605 e continua sua vida conturbada até a publicação da segunda parte, em 1615 e, menos de um ano depois, sua morte, em 1616. O sossego nunca veio.

O reflexo, entretanto, dessa vida de matizes é nítido no Quixote. Não passasse o que passou, o maior romance de todos os tempos talvez não o fosse. A narrativa é permeada de estórias secundárias; muitas delas baseadas em suas próprias vivências, como a do cativo de Argel. Estórias essas tão interessantes quanto a principal.

O universo satírico cavalheiresco criado por Cervantes mostra um indivíduo nos limites entre ficção e realidade. Ainda assim, o Cavalheiro da Triste Figura mostra-se como um espírito complexo. O lúcido ensandecido; o louco racional; o (como disseram os Engenheiros do Hawaii) guerreiro das causas perdidas.

Pois, ao final, D. Quixote surge como um louco, sim; mas também como um ser que luta pelo que acredita; que não permite que suas ideias morram. Fiel até os ossos, sonha como uma criança, acreditando que o mundo é um lugar cheio de aventuras e maravilhas; ao mesmo tempo, sabe que esse mesmo mundo não é perfeito, existem tortos que devem ser endireitados, realidades que devem ser modificadas.

E por que esperar que outro faça o que eu posso fazer? Por que não começo, eu, a mudança? É preciso reparar os agravos. E eu sou capaz de fazê-lo. O insano, o otário, o tolo, não se via como apenas mais um no mundo; mas percebia que apenas uma pessoa era capaz de mudá-lo: eu. E por que não eu? Por que não tratar uma prostituta como uma donzela? Por que não acreditar no melhor das pessoas?

E o que faz Cervantes, se não acreditar no seu louco? Depois de tantas lutas, balas, lâminas e sangue, talvez ele tenha percebido que subestimara as letras. Se ele realmente pretendia uma mudança com seu engenhoso fidalgo, ninguém sabe. Se foi uma comédia, uma tragédia, uma crítica ou uma prescrição, talvez nem ele mesmo soubesse. E se “ninguém lê o mesmo Quixote” é algo que talvez nunca se saiba ao certo. Mas uma coisa é certa:  Dom Quixote é uma obra que quebra o espaço e o tempo, trazendo, a cada leitura, novas belezas e renovando o vento que insiste em mover as pás de nossos gigantes. Por último, acho que pode se afirmar que, pelo menos dessa vez, a pena foi mais forte que a espada.

 

CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. O engenhoso fidalgo D. Quixote da Mancha. São Paulo: Abril, 2010. (Clássicos Abril Coleções; v. 8 e 9)

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